sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Júlia Emília e o Teatrodança por Fernando Abreu - matéria de jornal

 Texto publicado no jornal O Estado do Maranhão pelo poeta e jornalista Fernando Abreu sobre o processo criativo da bailarina e coreógrafa Júlia Emília e o Teatrodança.

Popular, erudito e radical

Foi em meio à concepção do espetáculo Bicho Solto Buriti Bravo que a coreógrafa maranhense Júlia Emília viu pela primeira vez os poemas de cordel de Ferreira Gullar, que esperavam por ela numa livraria carioca, num dia qualquer do ano de 1998. Mal terminou a leitura, já estava ligando para a editora e, num golpe de sorte, conseguindo o contato do autor. Sem conhecê-la e pouco dado a tietagens, o poeta crivou a conterrânea de perguntas antes de recebê-la para um café no famoso apartamento da Rua Duvivier, já ciente de que se tratava de coisa séria. Gullar leu rapidamente o texto e, depois de destacar, bem-humorado, as qualidades poéticas da história do boizinho que nunca passou de uma vaca, aceitou com naturalidade o convite para escrever os versos de cordel com que Júlia Emília sonhava. Era um sábado. No domingo, a surpresa: “está pronto, moça. Pode vir buscar seus versos”.

Com poemas de Ferreira Gullar e música de Zeca Baleiro (que acabava de gravar seu primeiro disco, Por Onde Andará Stephen Fray), o espetáculo estreou e ficou cerca de um ano em cartaz no Rio de Janeiro, com um elenco de alta rotatividade formado pelos alunos das muitas oficinas que Júlia ministrava na cidade. Havia um núcleo profissional, formado pelas também maranhenses Juliana Manhães, Joana Araújo e Ana Neusa Araújo, que estudavam no Rio de Janeiro. Montado pouco mais de uma década após sua fundação, Buriti Solto Buriti Bravo marca o encontro do Teatrodança com as raízes da cultura popular, proposta que o grupo vem aprofundando desde então.

No momento, a trupe se dedica à construção de uma inusitada ponte ocidente/oriente juntando, de um lado, as matrizes do wushu (artes orientais tradicionais) praticado no Centro Ozaka, e de outro, a capoeira Angola do Projeto Criação. A pesquisa, do qual resultará a montagem, envolve a consultoria de duas autoridades, o professor José Ribamar Martins, do Centro de Cultura Oriental Ozaka, e o mestre de Capoeira Sérgio Costa. Cabe aos dois a tarefa de assegurar que a essência das duas linguagens estará presente no resultado final, que afinal é uma terceira coisa, sem deixar de ser fiel nem aos chikuns do wushu nem aos passos da capoeira Angola. “A ideia é que quem veja o espetáculo não enxergue mais nem um nem outro, embora ambos estejam lá”, explica a diretora do Teatrodança, entregando a chave para a compreensão da aventura estética do grupo.

O desafio é sempre transformar a essência, seja da capoeira, da arte marcial ou do hip hop, em uma dramaturgia que se utiliza de um corpo, que por sua vez se utiliza de uma expressão popular.

O projeto atual envolve, além dos dois mestres, um casal de interpretes em cena: Wanderson Fábio, 19, no wushu desde os sete, e Thayliana Leite (20), no Teatrodança há seis anos e capoeirista com formação no Criação desde os 10. Além da coreógrafa como coordenadora da pesquisa, a ambientação cênica de Ângela Silveira, com seus ikebanas e mandalas transplantados para cenografia e figurinos; Dante Assunção e Marcos Caldas são responsáveis pela produção de imagens e trilhas sonoras, e assim por diante, em um leque que se abre no ritmo do crescimento da pesquisa, abrangendo áreas como música, literatura e artes plásticas. Gente que vai chegando, percebendo a proposta e se integrando a ela.

O caráter inclusivo é um traço distintivo do grupo, em um universo normalmente exclusivista e especializado com é o da dança. Foi assim em montagens como Sagração Coureira, Espirais e Alma Nova, todas resultantes de projetos de pesquisa voltados para a elaboração de uma dramaturgia com base em matrizes de expressão popular. Como não existe dramaturgia sem uma sólida base teórica, e como Júlia Emília, jamais pretendeu escamotear sua base erudita sob a capa de um populismo postiço, é importante esclarecer que a arte popular sempre fez parte da vida da artista que, como ela mesma conta, “sempre teve um pé na sapatilha, outro no terreiro”. Isso apesar da origem elitista que revela já no nome composto, tão ao gosto das famílias tradicionais da bucólica São Luís de sua infância.

Tudo começou quando a mãe, Edmar Bastos Ferreira da Silva, senhora da sociedade entre tantas de sua época, mas com outros interesses além de chás beneficientes, fundou junto com um grupo de amigas a escola de balé do Clube das Mães, primeira escola de dança de São Luís, onde a filha daria início à sua formação acadêmica, aos 5 anos. Acontece que, nascida e criada na Rua Cândido Ribeiro, Júlia sentia, como num romance de Josué Montello, a atração irresistível dos tambores que rufavam na Casa de Nagô, na Casa das Minas e no Boi da Madre Deus. O Tambor de Crioula dançava no Mercado Central, bem perto da Rua das Barraquinhas, onde morava sua avó. “Eu fugia de casa e ia ver tudo isso, para escândalo da família”. A mãe nem tanto, mas a irmã mais velha considerava um absurdo aquele envolvimento com coisa de preto pobre. Júlia Emília seguia os tambores, surda às recriminações, mas nem por isso livre de tutus e pliés.

Foi com esse ânimo que desembarcou no Rio de Janeiro em meados da década de 1970, decidida a encontrar uma saída fora do balé clássico, apesar de estar ali oficialmente para dar següencia à sua formação. Por indicação da professora Moema Correa, foi parar na Escola de Klauss e Angel Vianna, revolucionários do ensino da dança no Brasil, os primeiros a incluir anatomia e capoeira na grade curricular da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, onde lecionaram. Júlia contou sua história e virou bolsista, com o compromisso de fazer aula de segunda a sábado. Foi lá que, aos poucos começou a pôr pra fora, nas improvisações e composições, as imagens que alimentavam seu imaginário. “Não foi nada fácil, porque eu trabalhava com a cultura popular e, ao mesmo tempo, com o que havia de mais avançado em dança no Brasil”, lembra. Essas tentativas de fusão, no entanto, só iriam se tornar cena concreta, justamente no Bicho Solto.

Antes disso, porém, um fato seria determinante para a radicalidade da proposta do Teatrodança. Em 1990, a então professora de balé moderno decide, para estupefação geral, fechar as portas de uma das mais concorridas escolas de dança da capital maranhense. Estupefação, mas não revolta. Fato é que, apesar do prestígio, ou mesmo por conta dele, a escola de Júlia Emília era especialista no acolhimento de outsiders mirins no gracioso mundo da dança acadêmica. Meninas hiperativas, nervosas, gordinhas, falantes, pulantes, desajeitadas, e mesmo as que seriam hoje classificadas como “portadoras de necessidades especiais” encontravam ali o seu espaço. Em resumo, era uma escola anticonvencional dentro de um universo convencional. Quando a professora atingiu seu limite de paciência para o ensino acadêmico, os pais, mesmo se sentindo órfãos, sentiram-se, antes de tudo, gratos. Apesar de definitiva, a ruptura se deu sem maiores traumas.

Um descobrimento do ponto de vista pessoal

Era preciso conhecer melhor a matéria com a qual iria trabalhar dali em diante com exclusividade, tarefa que equivalia a um descobrimento do Brasil de vista pessoal. Nos seis meses que se seguiram ao fechamento da escola, Júlia Emília entregou-se a uma peregrinação de âmbito nacional buscando ampliar sua visão das manifestações populares, num percurso que a levou a estados como Mato Grosso, Amazonas, Santa Catarina e Minas Gerais, entre outros. Munida de franciscana simplicidade, além de dezenas de caderninhos de anotações (uma mania assumida) e uma prosaica câmera fotográfica (estamos no mundo pré-digital), Júlia abordava as comunidades e centros culturais. Ganhava casa, comida e roupa lavada, mas também cozinhava, limpava, ajudava como podia. O circuito começou em casa, quando ainda não eram comuns imersões culturais em locais como Maracanã, Vila Ivar Saldanha, Vila Passos, Belira, Coroadinho, Codozinho, Liberdade e Floresta. Tornou-se figura carimbada da programação do Centro de Cultura Popular, que trazia os grupos do interior do estado. Como não tinha gravador nem filmadora, tudo dependia da observação atenta.

Apesar de carente de uma metodologia, digamos, científica, a travessia de Júlia Emília, além do pretendido alargamento de visão, lhe possibilitou dar um sentido ao conhecimento acadêmico acumulado. Começou a repassar desde técnicas de respiração, postura, colocação e equilíbrio até orientações sobre alimentação, combatendo, por exemplo, a artrose que afligia muito dos integrantes dos grupos, devido à idade avançada. A partir daí passou a ser contratada por organismos como Funac, Unicef, Secretarias de Educação do Estado e do Município, conciliando essas atividades com o trabalho voluntário do grupo, ele próprio integrado por jovens em sua maioria protagonistas de uma história de superação que, por sua vez, passavam a repartir com suas comunidades o conhecimento construído no Teatrodança.

Foi assim na ilhinha, com Alex Costa, ensinando balé para turmas lotadas. Foi assim na Cidade Olímpica, com as irmãs Joelma e Eline Cunha, e na Vila Luizão, com Andréa Sousa. A partir daí, todos os projetos montados pelo grupo tem como alvo um local da periferia de São Luís, onde encontra um público geralmente ávido não apenas por comida, mas por diversão e arte, como no Maiobão, na Vila Kiola ou no Miritiua, sede atual do grupo. Cada vez mais evidente, a atuação pedagógica do grupo vive em simbiose com sua proposta estética, como gêmeos siameses. Uma pedagogia que tem como norte a investigação que é a alma do Teatrodança.

Fernando Abreu

Jornalista e poeta, autor de aliado involuntário (Exodus,2011)

Fonte: O Estado do Maranhão. Alternativo. 25.08.2011. pg. 01
Imagem: Divulgação Jornal do Brasil



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